“A razão pura tem de ceder o seu império à razão vital”[1]
Sempre que começamos uma nova criação durante dias instala-se um vazio. Um vazio dentro de um vazio que se amplia até soçobrar e as brechas se anunciarem como linhas de intersecção entre dois lados das coisas. É nesse vazio que nos perdemos e nos apoiamos para recomeçar de novo outra vez. A procura de uma força que seja uma razão de ser e de fazer alastra-se. É uma sensação incómoda de sermos ocupados e invadidos que se procura afastar e com a qual temos de lutar para que não nos imobilize e se sobreponha como um manto de sombra sobre músculos e os sentidos. Aos poucos uma razão teimosa, uma razão de criança entra em jogo e o difícil e as dores vão sendo substituídas por alguma outra coisa. É um exercício de distracção, um puro engano ao tempo e às coisas do mundo. Talvez nada daquilo que estamos por ali a tentar fazer esteja certo. O melhor é desistir continuam as vozes e as sombras cá dentro a mover-se e a falar entre esquinas e fugidios olhares. Habituadas por um exercício de surdez e de abafamento as pernas moles vão-se fazendo à estrada. Essa presença permanente do outro lado das coisas, do outro lado da realidade, se assim se pode dizer, talvez seja apenas uma outra limitação que as palavras nos impõem, traz para a construção dos objectos performativos essa doença, essa contaminação. Ficamos doentes de uma razão desconhecida que avassala. O que fazemos está contaminado por um outro lado que absurdamente procuramos trazer para o lado de cá, para o lado de uma revelação. E continuamente se falha. Que razão é essa então que nos sustenta como ossos de um esqueleto e nos move como fibras de um corpo escondido? Que diálogo interno mantemos para que a dúvida que nos aniquila seja ela incluída nas obras?
Ao longo dos tempos e das obras levantou-se um muro que foi derrubado vezes sem conta. É um muro teimoso que alguém reergue incessantemente e que procuramos ultrapassar de todas as formas possíveis. Umas vezes escalando-o, outras abrindo brechas nas paredes, outras ainda desistindo e ali ficamos do lado de cá à sombra das agruras, contentando-nos com o lamber dos dedos. A cada insistência é como se quiséssemos chegar ao de que é feito o mundo. E por aí: no dentro do mundo perdemo-nos em sonhos. Já quando fizemos a adaptação de Dom Quixote de Cervantes lhe pusemos um nome, demos um título à peça que nos dava uma imagem reflectida de nós e das nossas angústias criativas. Esse título trazia em si uma ideia de Freud transformada e adaptada ao caso. O título da peça usando as iniciais do título do livro e colocava-se no lugar da interrogação que só podia ser resolvida através: do confronto de encontros entre estranhos. E o título dessa obra era o seguinte: DQ, éramos todos nobres cavaleiros a atravessar mundos apanhados num sonho. A peça perguntava-se a si mesma de quê? De ou do quê é que era feita? E porquê? E para quem? Ao entrar naquela peça passávamos de um tempo para outro e por lá ficávamos. Era essa qualidade de sonho de que o outro lado é feito que procurávamos perseguir e trazer para o lado de cá: o da realidade em que nos apresentamos. Assim parece que o que nos sustenta é trazer para a frente os corpos fugidos. Viajar como quem transpõe os limites do legítimo e do legal, de buscar como perseguidores nessas Zonas obscuras e ou fora da luz os corpos que andam fugidos.
Esses perseguidores, cavaleiros andantes, de um lado para outro em trânsitos constantes, buscam as traves que sustentam o poder do mundo que os rodeia. E as bases desse mundo são elas mesmo inalcançáveis e em movimento contínuo. “Tudo o que é vivo sofre modificações. Não deveríamos contentar-nos com tradições imutáveis.”[2] Talvez seja essa perseguição de uma razão vital: mortes e renascimentos sucessivos que repetidamente nos guiam a enfrentar o vazio e a largar das mãos as certezas.
Entre 2006 e 2009 pegámos pela primeira vez num texto de William Shakespeare: King Lear. E dando-lhe um tom de arte popular e fazendo do rei um fingido cidadão e um clown experimental reconstruímos com dois actores as vinte e muitas personagens da peça original. Agora década e meia depois o regresso ao texto com três companheiros de viagem, três actores que de novo incentivam o processo de reflexão acerca e sobre para que importa e para que serve o teatro nos dias de hoje. De novo nos armamos de perseguidores e fomos em busca das sensações profundas. Das coisas transcendentais que nos tocam à superfície e nos empurram nas profundidades do existir.
As palavras do texto têm imensa força dentro e remetem para tantas coisas do passado — reminiscências de outros artistas, tempos, obras, paisagens, universos, — como de assuntos do futuro e dessa simbiose entre humano e natural, entre a pedra e a carne, o vegetal e o espírito. Nesse sentido as palavras e as coisas são objectos de liberdade, gestos em busca da sua libertação e que nos trazem em simultâneo: sentimentos paradoxais. De gratidão e ingratidão. Gratidão por termos uma vida de cada um para viver e ingratidão (filial e não só como vem expresso no texto de Shakespeare) pela nossa infinita incapacidade de tudo amar. O processo de estar vivo é sinónimo de crueldade. Há uma beleza na nossa interna deterioração que é mais do que um apelo estático. É uma necessidade vital que escapa à apreensão estética do mundo. Não estamos apenas a falar de sentimentos, mas da vida que os transporta e levanta. Essa perseguição faz parte dessas razões vitais que nos animam os movimentos do ser e da alma. No final fica a estupefacção e o abalo cá dentro. Que é em simultâneo um calor e um gelo ao percebermos que as coisas mudam e que não as podemos abraçar e fixar. Lançarmo-nos nas alturas que nos chamam e elevar o que em nós é humanidade e descer às profundezas e integrar os “nossos mais obscuros propósitos” como nos diz Lear logo a entrar. Ultrapassar o que em nós é físico e arriscar viver a nossa vida. É isso que o texto de Shakespeare nos incentiva acima de tudo. A descobrir o que nos transcende por: “Que o mundo, tanto por fora como por dentro, é sustentado por bases transcendentais, é algo tão certo como nossa própria existência.“[3]
Por último: palavras para os actores que aceitaram desta vez ser perseguidores connosco nesta demanda. É sobre eles que recai o encanto, o magnetismo, o alfabeto que nos permite reler e reconstruir a obra. É com eles e através deles que procuramos aceder a essa consciência diversa do que fazemos. É na nossa coragem e temores entrançados neles que podemos experimentar as coisas interiormente. Porque no teatro como em muitos outros lugares não se consegue entender aquilo que foi experimentado e vivido interiormente nesses lugares obscuros dos corpos. Aos actores é pedido trazer à superfície da consciência o abandonar de todas essas protecções e seguranças e trazer acima, à superfície as experiências dos sonhos. São os sonhos — esses veículos entre o interior e o exterior — que perseguimos porque “nós somos feitos da matéria de que os sonhos são feitos” como nos diz o bardo numa outra tempestade.
Quem se mete ao caminho procura, não afirma, deixa-se levar pelo indeterminado, sente o vazio à procura de sentir o cheio, não fala, imagina, conjuga, esforça-se, compara, tenta, inveja-se, interroga-se, suspende-se em reticências. Avança!
[1] Gasset, Ortega y, apud Herrero, Jesús in Broteria, cultura e informação, vol. 109, nº5, Novembro de 1979.
[2] Jung, C. G., Vida Simbólica, Obras Completas, vol. 18/2, Editora Vozes, Petrópolis, 2000, § 1.652.
[3] Jung, C. G., Mysterium Coniunctionis — Rex e Regina; Adão e Eva; A Conjunção, Obras Completas, vol. 14/2, Editora Vozes, Petrópolis, 2016, § 442.
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