Sinto a escrita como um gesto interior que ao passar para fora — para o mundo partilhado — semelhante a colocar as tripas ao sol, ou talvez melhor seja dizer, quando escrevo faço das tripas coração. Ou, neste caso, construo uma oração da carne. Ou talvez seja apenas um gesto especial que é nada, afinal. Um engano maravilhoso do coração levado pela cabeça. O que há de doloroso e temível nesse ponto estranho e intraduzível que se chama coração? Ou pulmão, espinha dorsal ou luzes instantâneas por detrás dos olhos? São todos pontos espalhados naquilo que inegavelmente chamamos de forma obscura: o corpo. E que ligam, à luz dos dias, o que está no fundo ao que passa para cima. Os intestinos à boca, o coração à mão. Há anos que persigo essa sensação que teima em escapar-se como se fosse um papel que esteja guardado entre milhares de outros despojos que a vida e a confusão foi acumulando — neste caso eu — em prateleiras, caixas e cápsulas do tempo. É um sentimento de estar perdido e de procurar sem encontrar. Algo impreciso, confuso e sem nomes para dar. Nem linguagem existe que o satisfaça e lhe dê caminho. É algo do domínio e território dos sonhos. Por isso, estes textos, são derivas de leituras e de encontros com os outros que afinal são eles os órgãos do meu corpo exposto ao acontecer da existência quotidiana. Nós somos a mesma pessoa, mas não somos a mesma pessoa. A conversa e o falar são formas de arte que praticamos sem cessar e que nos parecem sem importância. Mas não o são. Amo, no prazer sentido da carne, outros autores e o propósito de citar e criar a partir de acumulações sucessivas de frases e textos alheios. O vaguear sobre as obras de terceiros tornou-se natural obsessão, o que levou, a que mantivesse em mim um impedimento de encontrar o tal ponto do coração, esse órgão fonte, bomba de calor a partir do qual se espalha o sangue e se desenvolve a carne que envolve o mundo e me envolve a mim também. Por isso, nos últimos dias que precedem o começo de uma nova obra, sonho com um tema repetido. Um sentimento que caminha perdido no corpo sem encontrar forma de sair para fora. O horror de não descobrir caminhos ou não encontrar os documentos — as ideias luminosas — que tinha mesmo agora ali, aqui à frente de mim e ninguém sabe onde estão ou quem os retirou dali. Ou como quem diz, as palavras, as ideias, as imagens, os sentidos. Desconfio de mim. Creio mesmo que fui eu, o próprio que tirou da frente, o que lá estava para me angustiar e mistificar a busca permanente. Como um lago escuro onde me escondo e sem sucesso se me esgota o procurar. E o mais curioso é perceber que é isso que me dá prazer. O estar e ficar numa situação de sofrimento, confusão e indecisão que me permite continuar a caminhada. Um absoluto absurdo de ser um ser confuso e daí retirar prazer e imensidão. Levei tempos a perceber a relação entre tantas coisas, que sempre surgem, quando nos é permitido dizer. Agora que estou nesta fase de decidir o que falar com a nova criação — a relação entre procurar ideias e dar-lhes sentido e alguma ordem — remeto-me de novo ao impulso fonte que me faz repetidamente querer conceber. De forma aguda tenho passado o tempo em busca de uma voz. Algo meu e que a partir de mim me faça jus ao mundo interior em que me vejo movimentar e no qual fujo de mim também. Tenho por isso lido e pensado, escrito e rescrito vezes sem conta frases que são minhas e dos outros. Aos poucos vou sentido emergir o que é meu. Mas resta sempre aquele sentido que podia ter feito mais e melhor. Que podia ter ido mais alto e mais longe. Essa sensação, poucas vezes conseguida, de sobrepor o animal que existe dentro da carne ao outro animal que existe em público, com uma única voz. Essa é intuição rara de acontecer. Com frequência tomo por um novo engano o meu que é dos outros. Quase sempre as duas vozes não se entrelaçam como a única voz. Como um coração ao sol. Ainda procuro isso. E os testemunhos dos outros que adoto, uso, roubo, digiro e agradeço, e que de facto colidiram comigo em algum momento e comoveram são instrumentos de acesso ao íntimo. Posso tentar escondê-los de mim, como a criança que joga às escondidas consigo mesma, fazendo que não se vê, vendo-se. Mas são meus ou não? Os textos? As palavras? As imagens? Até que ponto sou senhor de mim e da minha voz? Quem sou eu e o que faço aqui? Posso afirmar que o digo é o que quero dizer? Que estou satisfeito e que fiz sempre o melhor que podia? Creio que não. O engano perpetua-se. E, no entanto, isso continua a alimenta o sonhar os meus sonhos. Porque ver uma coisa a perder-se não me faz sentir bem.
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Direcção, Espaço Cénico e Texto: João Garcia Miguel
Elenco: Sean O’Callaghan, Sara Ribeiro e Duarte Melo
Música: Vítor Rua
Assistência de Encenação: Rita Costa
Figurinos e Apoio à Cenografia: Rute Osório de Castro
Direcção de Produção: Georgina Pires
Produção Internacional: Vesela Molovska
Assistente de Produção: Telma Grova
Desenho de Luz: Roger Madureira e JGM
Direção Técnica: Roger Madureira
Fotografia e Promoção: Mário Rainha Campos e Joana Júdice
Imagem e Comunicação: Joana Júdice
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